Por Carvalho Filho
Em um tempo como o nosso,
tão marcado pela rapidez da informação, boa parte da literatura tem se
inclinado à brevidade. Outrora era fácil achar contos de quinze, vinte páginas.
Hoje nos deparamos com produções cada vez mais menores, que primam pela
concisão. Para se ter uma ideia da mudança, é comum encontrarmos contos que
variam de uma a quatro páginas, às vezes até menos, como no chamado
“microconto”. A brevidade, contudo, não deve ser tomada como sinônimo de
facilidade de entendimento ou superficialidade.
Eu
tenho medo de Górki & outros contos, da jovem escritora
Ângela Calou, segue a tendência citada acima. Faço minhas as palavras de Pedro
Salgueiro, presentes na orelha do livro, a respeito de Calou: “Sabe como dizer
e, principalmente, tem o que nos contar”. Exemplo disso é o conto “Do oco no
meio das falas e coisas”, texto de conteúdo alegórico e maravilhoso. Nele, um
homem vê-se acometido por séria enfermidade: do alto da sua cabeça saltam seus
pensamentos, expostos a quem quer que possa vê-los.
Que situação mais absurda
um homem que não tem as vísceras para fora, exigindo cuidados médicos, mas o
próprio pensamento! Este elemento, porém, é tão íntimo quanto nossas entranhas.
Diferente delas, para o mal do sujeito que padece na narrativa, o pensamento pode
evidenciar a estima que temos por esta ou aquela pessoa, nossos desejos sexuais
mais escondidos, o ódio e o desprezo por determinada pessoa. O que seria da
sociedade sem as mentiras? O mal-estar entre seus membros seria constante, pois
cada um diria ao outro não apenas coisas boas, como coisas ruins e
desagradáveis. Seria impossível viver com tanta verdade.
Outro momento feliz
ocorre em “Quase uma fantasia”, conto em que a narrativa gira em torno do
célebre caso de surdez do compositor alemão Beethoven. Como compreender que
tantas obras-primas tenham sido compostas nesse período? O narrador pergunta-se
se foi Beethoven quem ensurdeceu ou o mundo que emudeceu. Da indagação inicial
nasce a reflexão sobre a produção da arte em condições adversas, de como alguém
consegue criar em meio ao tormento. As limitações físicas e o sofrimento seriam
capazes de expandir nossos sentidos? É uma questão a se pensar.
Na brevidade dos contos
esconde-se o silêncio da reflexão a que muitas vezes somos conduzidos neste
livro marcado também por espantos. Em “Joana em seu dia de avesso”, após uma
sucessão de insanidades da protagonista, ocorre um desfecho lamentoso,
encerrando de maneira melancólica e insana a trajetória de Joana. Seria uma
alusão à Joana d’Arc, misto de heroína e santa que não raro é tida como louca? Talvez.
E o talvez na literatura, faz um bem danado, como na mais famosa incógnita da
literatura brasileira: Capitu traiu ou não Bentinho?
Com a ideia inicialmente
lançada não tenho a intenção de estabelecer um determinismo entre a obra e sua
época, e sim atentar para a ligação existente entre uma coisa e outra, num
complexo processo de interação. Além das produções comentadas muitas outras
mereceriam destaque pela sua qualidade, mas acredito que comentários sobre os
contos escolhidos já sejam capazes de despertar o interesse do leitor para mais
esse exemplo da literatura vivaz e reflexiva que vem sendo produzida no
país.
Há quem veja a literatura
como um jogo, como expressão dos anseios humanos. Dependendo do ponto de vista
ela tem vestido diferentes roupas, assumido diversas máscaras. O certo é que
sem a literatura, por mais que ela não possa mudar o mundo, faz parte do ser
humano, para o bem e para o mal, tem mostrado o homem a si mesmo, às vezes
idealizado, noutras subestimado ou mais próximo, digamos da realidade, esse
conceito bastante escorregadio.
Mais do que entreter ou educar,
seja qual for a função que a literatura possa exercer, ela, incluindo obras em
verso e prosa, peças etc., é um lembrete de que somos humanos e não máquinas,
meras engrenagens de um sistema econômico excludente e cruel. Um computador não
escreveria “Eu tenho medo de Górki”, ou qualquer outro dos contos reunidos no
volume abordado neste texto.
Referência
CALOU, Ângela. Eu tenho medo de Górki & outros contos. Fortaleza: Gráfica LCR,
2011.
Perfeito comentário!
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