terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Por que não ter medo de Eu tenho medo de Górki & outros contos?



Por Carvalho Filho

Em um tempo como o nosso, tão marcado pela rapidez da informação, boa parte da literatura tem se inclinado à brevidade. Outrora era fácil achar contos de quinze, vinte páginas. Hoje nos deparamos com produções cada vez mais menores, que primam pela concisão. Para se ter uma ideia da mudança, é comum encontrarmos contos que variam de uma a quatro páginas, às vezes até menos, como no chamado “microconto”. A brevidade, contudo, não deve ser tomada como sinônimo de facilidade de entendimento ou superficialidade.
Eu tenho medo de Górki & outros contos, da jovem escritora Ângela Calou, segue a tendência citada acima. Faço minhas as palavras de Pedro Salgueiro, presentes na orelha do livro, a respeito de Calou: “Sabe como dizer e, principalmente, tem o que nos contar”. Exemplo disso é o conto “Do oco no meio das falas e coisas”, texto de conteúdo alegórico e maravilhoso. Nele, um homem vê-se acometido por séria enfermidade: do alto da sua cabeça saltam seus pensamentos, expostos a quem quer que possa vê-los.
Que situação mais absurda um homem que não tem as vísceras para fora, exigindo cuidados médicos, mas o próprio pensamento! Este elemento, porém, é tão íntimo quanto nossas entranhas. Diferente delas, para o mal do sujeito que padece na narrativa, o pensamento pode evidenciar a estima que temos por esta ou aquela pessoa, nossos desejos sexuais mais escondidos, o ódio e o desprezo por determinada pessoa. O que seria da sociedade sem as mentiras? O mal-estar entre seus membros seria constante, pois cada um diria ao outro não apenas coisas boas, como coisas ruins e desagradáveis. Seria impossível viver com tanta verdade.  
Outro momento feliz ocorre em “Quase uma fantasia”, conto em que a narrativa gira em torno do célebre caso de surdez do compositor alemão Beethoven. Como compreender que tantas obras-primas tenham sido compostas nesse período? O narrador pergunta-se se foi Beethoven quem ensurdeceu ou o mundo que emudeceu. Da indagação inicial nasce a reflexão sobre a produção da arte em condições adversas, de como alguém consegue criar em meio ao tormento. As limitações físicas e o sofrimento seriam capazes de expandir nossos sentidos? É uma questão a se pensar.
Na brevidade dos contos esconde-se o silêncio da reflexão a que muitas vezes somos conduzidos neste livro marcado também por espantos. Em “Joana em seu dia de avesso”, após uma sucessão de insanidades da protagonista, ocorre um desfecho lamentoso, encerrando de maneira melancólica e insana a trajetória de Joana. Seria uma alusão à Joana d’Arc, misto de heroína e santa que não raro é tida como louca? Talvez. E o talvez na literatura, faz um bem danado, como na mais famosa incógnita da literatura brasileira: Capitu traiu ou não Bentinho?
Com a ideia inicialmente lançada não tenho a intenção de estabelecer um determinismo entre a obra e sua época, e sim atentar para a ligação existente entre uma coisa e outra, num complexo processo de interação. Além das produções comentadas muitas outras mereceriam destaque pela sua qualidade, mas acredito que comentários sobre os contos escolhidos já sejam capazes de despertar o interesse do leitor para mais esse exemplo da literatura vivaz e reflexiva que vem sendo produzida no país. 
Há quem veja a literatura como um jogo, como expressão dos anseios humanos. Dependendo do ponto de vista ela tem vestido diferentes roupas, assumido diversas máscaras. O certo é que sem a literatura, por mais que ela não possa mudar o mundo, faz parte do ser humano, para o bem e para o mal, tem mostrado o homem a si mesmo, às vezes idealizado, noutras subestimado ou mais próximo, digamos da realidade, esse conceito bastante escorregadio.
Mais do que entreter ou educar, seja qual for a função que a literatura possa exercer, ela, incluindo obras em verso e prosa, peças etc., é um lembrete de que somos humanos e não máquinas, meras engrenagens de um sistema econômico excludente e cruel. Um computador não escreveria “Eu tenho medo de Górki”, ou qualquer outro dos contos reunidos no volume abordado neste texto.     

      

Referência

CALOU, Ângela. Eu tenho medo de Górki & outros contos. Fortaleza: Gráfica LCR, 2011.

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